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Tribunal de Justiça de Santa Catarina TJ-SC - Remessa Necessária Cível : 03224844620188240038 Joinville 0322484-46.2018.8.24.0038 - Inteiro Teor
Inteiro Teor
Remessa Necessária Cível n. 0322484-46.2018.8.24.0038, de Joinville
Relatora: Desembargadora Sônia Maria Schmitz
REEXAME NECESSÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. REVOGAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO. RESTABELECIMENTO DO AUXÍLIO PREVISTO NA LEI COMPLEMENTAR N. 266/2008 (ART. 102) E NO DECRETO N. 14.958/2008. IMPETRANTE QUE OBTEVE A GUARDA DA FILHA ADOLESCENTE, PORTADORA DE NECESSIDADES ESPECIAIS, DE SUA COMPANHEIRA, COM QUEM CONVIVE MARITALMENTE. NEGATIVA AO PAGAMENTO DO BENEFÍCIO. ILEGALIDADE. DISTINÇÃO ENTRE FILIAÇÃO QUE VIOLA O ART. 33, § 3º, DO ECA. EQUIPARAÇÃO DO MENOR SOB GUARDA JUDICIAL A FILHO LEGÍTIMO, PARA FINS DE PERCEPÇÃO DE BENEFÍCIOS. OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA PRIORIDADE ABSOLUTA E DA PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. PRECEDENTES DESTA CORTE E DO STJ.
À luz do princípio da proteção integral e preferencial da criança e do adolescente, o artigo 33, § 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente prevalece sobre norma administrativa, devendo-se reconhecer a qualidade de dependente do menor sob a guarda de servidor público.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Remessa Necessária Cível n. 0322484-46.2018.8.24.0038, da comarca de Joinville 1ª Vara da Fazenda Pública em que é Impetrante Reinaldo Raul de Souza e Impetrada Secretária de Gestão de Pessoas do Município de Joinville e outro.
A Quarta Câmara de Direito Público decidiu, por votação unânime, manter a sentença em reexame necessário. Custas legais.
Participaram do julgamento, realizado no dia 15 de agosto de 2019, os Exmos. Srs. Des. Rodolfo Tridapalli e Vera Lúcia Ferreira Copetti.
Florianópolis, 16 de agosto de 2019.
Sônia Maria Schmitz
Relatora e Presidente
RELATÓRIO
Reinaldo Raul de Souza impetrou "mandado de segurança com pedido liminar" contra a Secretária Municipal de Gestão de Pessoas, objetivando o restabelecimento do auxílio previsto no art. 112 da Lei Complementar n. 266/2008 e no Decreto n. 14.958/2008.
Para tanto, aduziu ser detentor da guarda da filha de sua companheira, homologada judicialmente em 03.04.2017, e que, em razão da adolescente ser portadora de cegueira e visão subnormal (CID H54) e neoplasia cerebral com sequelas motoras e sensoriais, vinha recebendo o "auxílio ao servidor com filho com deficiência" desde setembro/2017.
Contudo, a benesse restou revogada pela autoridade coatora em setembro/2018 (Memorando n. 2463929/2018-SGP.USS), sob o fundamento de que é devida somente nas hipóteses de filiação consanguínea ou civil do dependente com o servidor e, sendo ele mero detentor da guarda, não faz jus ao percebimento. Nesses termos, defendeu que a cessação do pagamento infringe o art. 37, da Constituição da Republica Federativa do Brasil, art. 16, § 2º, da Lei n. 8213/91 e art. 33, § 3º, da Lei n. 8069/90 e, após tecer demais considerações, pugnou, liminarmente, pelo seu imediato restabelecimento e sua confirmação a final (págs. 01-07).
Denegada a ordem liminar (pág. 123), o impetrante interpôs agravo de instrumento (n. 4029248-86.2018.8.24.0900), o qual alterou o interlocutório, concedendo gratuidade judiciária e a tutela de urgência almejadas (págs. 138-143).
Notificada, a autoridade coatora manifestou-se informando o restabelecimento do benefício e asseverando que o instituto jurídico da guarda não pode ser confundido com as hipóteses de filiação civil ou consanguínea, ensejadoras do auxílio em comento, razão pela qual se faz indevido (págs. 150-153).
Colhido o parecer do Representante Ministerial (págs. 163-165), sobreveio a r. sentença concessiva da segurança, verbis:
[...] Posto isso, concedo a segurança pleiteada por Reinaldo Raul de Souza para, confirmando a liminar deferida pelo e. TJSC, anular o ato administrativo que culminou na cassação do benefício "Auxílio Filho Def. (30%)" e determinar o restabelecimento do benefício devido ao impetrante.
Arcará o Município de Joinville com o pagamento das despesas processuais praticadas pelos servidores não oficializados desta comarca (RCE, art. 35, alínea 'h').
Honorários incabíveis (LMS, art. 25).
[...]
Sentença sujeita a reexame necessário (LMS, art. 14, § 1º) (págs. 166/167 - Juiz Renato L. C. Roberge).
Sem recurso voluntário (pág. 181), ascenderam os autos a esta Corte, tendo a Procuradoria-Geral de Justiça se manifestado pela manutenção do decisum em reexame necessário (págs. 190-194).
É o relatório.
VOTO
O mandado de segurança, como cediço, exige para alcançar seu intento que a pretensão deduzida venha estribada em fatos comprovados, sem qualquer dúvida quanto à existência do ato ilegal ou do direito subjetivo invocado, porque a inferência sobre a liquidez e certeza do segundo depende logicamente da concretude do primeiro, ainda que sob a forma de ameaça.
Destaque-se que "Direito líquido e certo, segundo posicionamento já consolidado, é aquele titularizado pelo impetrante, embasado em situação fática perfeitamente delineada e comprovada de plano por meio de prova pré-constituída. É, em síntese, a pré-constituição da prova dos fatos alçados à categoria de causa de pedir do writ, independentemente de sua complexidade fática ou jurídica, que permite a utilização da ação mandamental." (SODRÉ, Eduardo. Ações Constitucionais. 6ª ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 124).
Pois bem. A situação fática dá conta de que o impetrante, servidor público municipal ocupante do cargo de Assistente Administrativo, passou a perceber, a partir de setembro/2017, o "auxílio ao servidor com filho com deficiência" (págs. 11-13), após obter judicialmente a guarda da adolescente M. F. N. de M. C. O., filha de sua companheira (págs. 17-22), com a qual convive maritalmente (pág. 23).
Todavia, em setembro de 2018 teve a benesse revogada por força do Memorando SEI n. 2463929/2018 - SGP.USS, sob o fundamento de que:
"[...] o auxílio ao servidor com filho com deficiência, na forma do art. 102 da Lei Complementar n. 266, de 05 de abril de 2008 e de seu Decreto regulamentador, é devido somente nas hipóteses em que haja relação de filiação (consanguínea ou civil) do paciente com o servidor".
[...]
Outrossim, a filiação civil, entendida como a resultante da adoção, possui o mesmo status jurídico da filiação consanguínea. Cumpre frisar que a adoção é regida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Ordinária n. 8.069/1990), na forma dos artigos 39 a 52-C, a qual não se confunde com o instituto jurídico da guarda, que é regulamentado pelos artigos 33 a 35 do ECA, e tampouco com o instituto da tutela (arts. 36 a 38 do mesmo diploma)"(pág. 15 - grifo no original).
Nessa senda, o impetrante alegou que a revogação do benefício acarretou nítida infringência ao art. 37, da Constituição da Republica Federativa do Brasil, art. 16, § 2º, da Lei n. 8213/91 e art. 33, § 3º, da Lei n. 8069/90, tese acolhida pelo decisum a quo, que não comporta alteração por meio do presente reexame.
Isso porque, de fato, a legislação instituidora do benefício não criou diferenciação entre filiação originária e as situações de adoção ou guarda.
Com efeito, o auxílio ao servidor com filho com deficiência - estabelecido no art. 102 do Estatuto dos Servidores Públicos do Município de Joinville (Lei Complementar n. 266/2008) e regulamentado pelo Decreto Municipal n. 14.958/2008 -, encontra-se previsto nos seguintes termos:
Art. 102 - Será concedido auxílio mensal ao servidor com filho com deficiência, que corresponderá a 30% (trinta por cento) do menor vencimento dos servidores, mais a assunção das despesas de matrícula e mensalidades em escola especial e/ou tratamento especializado, que serão pagas a essa instituição até o limite de 70% (setenta por cento) do menor vencimento citado.
§ 1º A concessão do auxílio dependerá da verificação da condição da deficiência, mediante apresentação de atestado médico atualizado anualmente, que avaliará a condição de portador de deficiência, para fins deste artigo, nos termos da regulamentação própria.
§ 2º O auxílio ao servidor com filho com deficiência deverá ser requerido com atestado médico junto à Secretaria de Gestão de Pessoas.
Nesse contexto, tocante à ausência de distinção entre as hipóteses de filiação na legislação em comento, o Togado a quo pertinentemente ponderou que "[...] Em verdade, o dispositivo legal nem mesmo poderia estabelecer tratamento diferenciado, na medida em que, nada obstante a compreensão manifestada pela autoridade impetrada, a interpretação das normas legais instituidoras da benesse deve levar em conta as regras gerais estabelecidas pela lei federal que, para fins previdenciários, equipara a proteção conferida à guarda àquela dispensada à filiação civil. Com efeito, a guarda "destina-se a regularizar a posse de fato" (ECA, art. 33, § 1º) e "confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários" (ECA, art. 33, § 3º) "(págs. 166-167).
De fato, o art. 33 do Estatuto da Criança e do Adolescente conferiu à criança ou adolescente a condição de dependente para todos os fins e efeitos de direito, consoante dispõe em seu § 3º:
"Art. 33. A guarda obriga à prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.
§ 3º. A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários."
Assim,"[...] inexistem óbices substanciais à inclusão do menor sob guarda como dependente do guardião segurado, em face dos mandamentos constitucionais de proteção integral e prioritária à criança e ao adolescente, inclusive com a garantia de direitos previdenciários (art. 227, § 3º, II, da CF). Além disso, há de se prestigiar o acolhimento do menor, sob a forma de guarda, nos termos do art. 227, § 3º, VI, da Magna Carta; verifica-se, ainda, o teor do Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 33, § 3º"(STJ, AREsp n. 1385005/SP, relª. Minª. Aussete Magalhães, publicado em 14.12.2018).
Logo, consoante entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, estendendo-se ao menor sob guarda do servidor público os respectivos benefícios previdenciários a eles destinados, inexiste óbice tocante às demais benesses franqueadas pela Administração.
In casu, restaram comprovados os requisitos ensejadores do auxílio focalizado, quais sejam, a relação de dependência entre o impetrante e a adolescente portadora de necessidades especiais (págs. 30-33), cuja guarda obteve judicialmente (págs. 17-22), convivendo em relação marital com a genitora da menor (pág. 23).
Não se olvida, outrossim, que as disposições do ECA são de ordem pública, e, a teor do que preconiza o art. 227 da Constituição da Republica Federativa do Brasil, sobrepõem-se a qualquer outra norma, ou seja, são obrigatórias e não comportam livre disposição das partes envolvidas.
Nesses termos, esta Corte de Justiça já se manifestou no sentido de que:
[...]"A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários". O artigo tem respaldo no princípio do melhor interesse do menor. Assim, se foi deferida a guarda, mesmo que provisória, do infante à recorrida é obrigação da mesma prestar assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente. Na mesma linha, dita a Constituição Federal, em seu art. 227, ser dever da família da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, á saúde, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Nessa medida, as crianças e adolescentes sob guarda, são, nos termos do § 3º, do art. 33 do ECA, dependentes, para todos os fins e efeitos de direitos, inclusive previdenciários. [...]" (grifouse). (REsp 1432530 MG 2011/0291889-3. Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE j. 13/10/2014) (AC n. 0022021-20.2011.8.24.0008, de Blumenau, rel. Des. Rodolfo Tridapalli, j. em 24.08.2017).
Ainda, mutatis mutandis:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CONDENATÓRIA DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. RECURSO DA RÉ. INCLUSÃO DE DEPENDENTE NO PLANO DE SAÚDE DA CAIXA DE ASSISTÊNCIA DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO DO BRASIL. DESCENDENTE SOB A GUARDA DO AUTOR. ALEGADO DESCABIMENTO ANTE A TRANSITORIEDADE DA MEDIDA. INFANTE SOB GUARDA EQUIPARADO À CONDIÇÃO DE DEPENDENTE. INTELIGÊNCIA DO ART. 33, § 3º, DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. REFLEXO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL, CONSTITUCIONALMENTE PREVISTO PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES. IMPERIOSA VINCULAÇÃO DO NETO AO PLANO DE SAÚDE. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (AC n. 2013.006039-8, de Lages, rel. Des. Gerson Cherem II, j. em 27.11.2014).
Na mesma esteira, extrai-se da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
[...] Os direitos fundamentais da criança e do adolescente têm seu campo de incidência amparado pelo status de prioridade absoluta, requerendo, assim, uma hermenêutica própria comprometida com as regras protetivas estabelecidas na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
3. A Lei 8.069/90 representa política pública de proteção à criança e ao adolescente, verdadeiro cumprimento da ordem constitucional, haja vista o artigo 227 da Constituição Federal de 1988 dispor que é dever do Estado assegurar com absoluta prioridade à criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
4. Não é dado ao intérprete atribuir à norma jurídica conteúdo que atente contra a dignidade da pessoa humana e, consequentemente, contra o princípio de proteção integral e preferencial a crianças e adolescentes, já que esses postulados são a base do Estado Democrático de Direito e devem orientar a interpretação de todo o ordenamento jurídico. (EREsp 1482391, rel. Min. Gurgel de Faria, publicado em 25.06.2019).
Sendo assim, à luz dos dispositivos legais e constitucionais, bem como a teor da jurisprudência deste Sodalício e da Corte de Cidadania, conclui-se que a Lei n. 8069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), ao equiparar expressamente o menor sob guarda à condição de filho, demonstra que eventual distinção ou limitação à extensão do menor sob guarda dos benefícios conferidos aos filiados civis ou consanguíneos fere o próprio fim do instituto da guarda, que é o de propiciar ao menor a proteção total pelo seu guardião.
Logo, evidenciado o direito líquido e certo do impetrante ao restabelecimento do auxílio, ante o preenchimento dos requisitos exigidos para concessão da benesse, mantém-se inalterada a decisão a quo, porquanto, como explicitado, guarda conformidade com os dispositivos legais e constitucionais invocados.
Diante do exposto, vota-se pela manutenção da sentença concessiva da segurança em reexame necessário.
Este é o voto.
Gabinete Desembargadora Sônia Maria Schmitz (jcm)